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Retire os elementos da narrativa do texto "cruzamento" de Antônio prata
CRUZAMENTO
Vou para o dentista, duas da tarde, meu carro corta com esforço a geléia modorrenta em que o ar se transformou esses dias. Um casal de adolescentes começa a atravessar a rua, de mãos dadas, à minha frente. Eles dão uma olhada para o meu carro, de leve, calculando. A garota faz menção de apressar o passo, o garoto a dissuade com um olhar de esguelha e, talvez, um discretíssimo aperto na mão. Eles seguem seu ritmo, lento, rumo a outra calçada.
Se nenhum de nós mudarmos nossas velocidades, acabarei por atropelá-los. É evidente que eles sabem disso, como é evidente que isso não acontecerá, pois eu venho devagar e basta pisar de leve no freio e pronto, saímos todos, são e salvos, eu para o dentista e eles para a casa dos pais de um deles, onde se deitarão numa cama de solteiro, embaixo de uma parede cheia de fotos e posteres e frases de canetinha hidrocor tipo Ju-eu-te-amo-amiga!, e descobrirão que a vida é boa. Este pequeno acontecimento me atinge em algum calo das minhas neuroses urbanas. Irrito-me porque eles fingiram que a velocidade deles estava certa, mas sabem que, se não morreram atropelados, é porque eu diminuí o ritmo. Mais ainda, talvez, porque o garoto passou para a menina a idéia, naquele olhar fugaz, de que com ele ela estava segura, de que era só confiar e tudo daria certo, eles chegariam ao outro lado da rua, depois ao outro lado do mundo, se quisessem, e seriam felizes para sempre. Mas foi o tiosão aqui quem tornou a travessia possível.
Percebo então que quem atravessou a rua à minha frente não foi um casal de adolescentes, foi a adolescência em si. E quem freou o carro não fui eu, mas a idade adulta. Pois é assim que a adolescência lida com o mundo. Não capitula: arrisca, peita. “Imagina, se eu mudo meu ritmo, o mundo é que se acostume a ele!”, e porque os adolescentes têm um anjo protetor dos mais poderosos, ou, pelo menos, uma sorte do tamanho de um bonde, acontece de chegarem, quase sempre, sãos e salvos do outro lado da rua.
Já a idade adulta pondera, põe o pé no freio quando convém, faz concessões ao mundo, dirige afinado com a sinfonia dos outros, dentro dessa outra geléia modorrenta cujo nome, hoje, soa tão adolescente: sistema. E por isso me irrito, porque ali, naquela rua, diminuindo meu ritmo, me percebo velho, adequado, apascentado. Eles vão no ritmo deles, a realidade que se vire e é assim, distraídos, que mudam o mundo.
Sagot :
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